quarta-feira, 24 de outubro de 2012

A Origem do Futebol Espectáculo



Se compararmos um jogo de futebol actual com um jogo de futebol de há 30 anos atrás, apercebemo-nos que existem diferenças enormes, o que, se analisarmos bem as coisas, será normal, dado o crescimento e dimensão que o futebol tem actualmente. Tais diferenças poderão, numa primeira análise, justificar-se pelos interesses económicos que, hoje em dia, gravitam em torno do futebol, pela evolução que se verificou nas metodologias de treino, até à análise exaustiva dos seus mais ínfimos pormenores.
Porém, quando olhamos para um jogo de futebol, o que mais me preocupa é a escassez de talentos, pois é aqui que o futebol começa a perder a sua espetacularidade. Muitos de vós perguntar-se-ão, neste momento, como poderá alguém dizer uma coisa destas, numa era em que temos ao mesmo tempo um Messi e um Cristiano Ronaldo? A resposta é simples: efectivamente, os adeptos de futebol foram abençoados por terem a oportunidade de ver, na mesma década, dois futebolistas com este talento. Porém, ao olharmos para as restantes equipas, deparamo-nos com um fosso tremendo entre as mesmas e que nos seus planteis escasseia o talento individual e o improviso, em particular no futebolista Europeu.
Na nossa opinião, isto deve-se ao facto de, actualmente, as sociedades darem às suas crianças um cada vez maior leque de possibilidades de brincadeiras e diversões, muito diferente daquele que existia há anos atrás. Hoje as crianças não brincam como antes: os videojogos e os computadores assumiram um papel de tal forma importante, que as crianças deixaram de brincar com recurso ao seu corpo, às suas capacidades motoras… O correr, o saltar e o inventar jogos foram substituídos por uma cadeira confortável e um computador.
Lembro-me de na minha infância passar os dias na rua a jogar à bola, sendo que tenho consciência que este quadro seria igual em todo o país e por toda a Europa.
A rua foi, durante muitos anos, “a mãe” dos melhores futebolistas do mundo, onde os mesmos deram os primeiros toques na bola e onde as regras do jogo eram ditadas por eles.
Ao fazer uma pesquisa biográfica encontrei nos vários relatos de futebolistas como Ronaldo, Maradona, Zidane, Pelé, Valdano, Ronaldinho Gaucho, entre outros, que todos deram os seus primeiros passos futebolísticos na rua, sendo que todos referem a importância que este inicio de “carreira” teve para eles na aquisição de técnicas que mais tarde lhes viriam a ser muitíssimo importantes na construção de das carreiras de sucesso que todos conhecemos.
Na rua, não haviam regras, não havia árbitro, nem sequer treinador, mas havia bola e horas livres… Estavam, assim, reunidas todas as condições para se assistir a um “espetáculo” de bola.
O futebol de rua foi e continua a ser muito importante, pois permite aos jovens futebolistas desenvolver qualidades que de outra forma seria impossível. Na rua, o pavimento é sempre diferente, desde terra batida, pavimentos em pedra, cimento e alcatrão; A bola também varia no tamanho e na textura; O número de jogadores não é fixo - normalmente jogam os que estiverem presentes; As balizas são inexistentes, pelo menos no formato padrão. E este jogo, totalmente anárquico, em que cada jogador quer a bola só para si e em que tem de fintar inúmeros adversários para poder fazer golo, permite desenvolver habilidades técnicas que, num contexto com treinador (um mau treinador), seria totalmente impossível, pois este estaria, constantemente, a criticar os seus jogadores, exigindo que os mesmos passassem a bola. Ora, este tipo de acções por parte dos treinadores limita, em muito, a criatividade dos jovens futebolistas.
No que toca ao desenvolvimento motor, a rua dota os jovens futebolistas de aptidões que num contexto em que jogassem num bom relvado, ou num relvado sintético, nunca iriam adquirir, pois o piso irregular e a variação da dimensão e textura da bola, permitem desenvolver sinapses nervosas e escrever uma informação ao nível neuro-muscular, que iria ser extremamente útil, pois, quando num jogo se deparassem com uma situação em que têm de recorrer ao seu talento, fazem-no de forma natural e inconsciente.
Como refere Ronaldinho Gaucho, que, actualmente, é jogador do Atlético de Mineiro (citado por Larcher, 2004): “No meu bairro, em Porto Alegre, passei a infância a jogar à bola. Nunca me separava da bola, driblava, driblava, driblava sem parar. Jogava na rua com os meus colegas, mas também jogava horas sozinho ou com o meu cão. Em minha casa há bolas por todo o lado. Aproveito todas as oportunidades para improvisar um pequeno jogo no jardim ou para me descontrair a fazer habilidades. A bola é a minha melhor companhia, é o objecto que mais amo na vida. Quando chove jogamos com uma bola de ténis na sala. Na minha infância a minha mãe podia proibir-me de quase tudo, inclusive de sair, mas nunca de jogar à bola”.
Como todos sabemos, actualmente, as academias e as escolas de futebol vieram ocupar um papel importante na formação dos jovens futebolistas. Porém, por muito esforço e investimento que haja por parte dos seus gestores e treinadores, nunca conseguirão reproduzir o futebol de rua na sua génese, nem retirar os benefícios dai advenientes… Ainda que utilizem pisos e bolas com diferentes texturas, balizas e campos reduzidos, haverá sempre de faltar coisas tão básicas como o “instinto de sobrevivência” que os jovens adquirem ao jogar à bola na rua, uma vez que, para alguns deles, fazerem carreira no futebol é a única forma de subsistirem e levarem uma vida desafogada.
Ora, é por todos estes motivos que acredito que os futebolistas de amanha – principalmente os Europeus – serão tecnicamente evoluídos, muito inteligentes ao nível da leitura de jogo e do ponto de vista táctico. Porém, a magia do improviso, do arriscar nos confrontos de 1x1, será cada vez mais escasso à medida que o “Futebol de Rua” for desaparecendo.
É a minha convicção, que o melhor futebolista do mundo da próxima década nascerá em alguma favela do Brasil ou da Argentina. 



5 comentários:

  1. Boa tarde André,


    Estive a ler atentamente e de facto, vem ao encontro do que referi num outro post. Só não sei se posso concordar com o último parágrafo,.."tecnicamente mais evoluídos", mais jogadores com maior qualidade técnica, não acredito que cheguem a ser muito mais que isso. Quanto ao futebol de rua, ele pode ser perfeitamente recriado desde as escolinhas até aos infantis, haja vontade e perceberem que realmente faz toda a diferença. Por fim, outro aspeto determinante na diferença entre os que conseguem e os que não conseguem reside na capacidade que cada Treinador/professor tem para estimular/criar condições para que os atletas aprendam e percebam onde reside o sucesso e como estará "vestido" o insucesso. Aqui é que vemos os melhores treinadores.
    Foram cinco anos fantásticos dedicados ao futebol formação. Muita luta para desmistificar muita coisa e mudar comportamentos. É uma luta!


    Os melhores cumprimentos,

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  2. Boa tarde Zico447
    Quando falo em técnica, especificamente neste caso, estou-me a referir ao passe, à recepção e domínio, etc..até mesmo ao driblar e fintar(vários tipos de fintas que se ensinam nas academias), as qualidades que se retiram da rua tem mais a ver com o improviso, outras habilidades motoras que se adquirem de coisas como o jogar com bolas diferentes em pisos diferentes entre outros aspectos mencionados no artigo, dou o seguinte exemplo na Alemanha, Inglaterra, Holanda etc.. os jogadores são tecnicamente mais evoluídos de que no Brasil e Argentina, porem não tem a capacidade de adaptação nem a capacidade de resolver de uma forma imprevisível as situações que se lhe deparam em jogo..habilidade e destreza motora não é técnica de execução.
    concordo parcialmente que o futebol de rua pode ser recriado nos escalões etários mais baixos, mas só parcialmente, o instinto de sobrevivência e o facto de a bola e a rua ser muitas vezes onde passam mais horas por dia não pode ser recriado nas academias, um miúdo da favela passa horas na rua e com fome, um menino de Cascais que jogue num clube ou academia onde se tente reproduzir o futebol de rua, não passa o mesmo numero de horas neste contexto, e quando termina o treino vai para casa tomar um banho quente e comer uma boa refeição, logo não creio que seja a mesma coisa.
    Creio que a maior parte dos treinadores de futebol formação não tem conhecimento adequado, e vêm a formação como sendo um meio onde podem ganhar jogos para atingir um fim, o deles próprios, que passa quase sempre por serem reconhecidos pelos seus feitos e que se lhes sejam atribuídas outro tipo de equipas. Para se estar na formação tem que se estar disposto a dar mais que a receber.
    Muito Obrigado por ler e expor a sua opinião.
    Com os melhores cumprimentos
    André Borges

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  3. Boa tarde André,

    Obrigado pela resposta e a partilha da sua opinião.
    Entendo o seu ponto de vista mas não posso concordar e também este não seria o local mais adequado, pelas condicionantes que tem.
    Por exemplo, na Holanda debate-se esse problema do futebol de rua (tenho um artigo do cruyff sobre isso).
    Já agora, as habilidades motoras são a base para o movimento específico dos desportos, se ela for fraca dificilmente terás um atleta e são influenciadas apenas por aspetos socioculturais (segundo os estudos divulgados).
    Um dia pode ser que o encontro e aborde um pouco sobre estes temas. No entanto, não deixe de apresentar estes temas porque são muito pertinentes para a comunidade de professores e treinadores.
    Continuação do excelente trabalho!

    Os melhores cumprimentos,

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  4. Boa Noite Zico447
    Efectivamente este não é o local mais adequado para uma discussão mais aprofundado. Como deve calcular quando escrevo um artigo não pretendo que todos os leitores estejam de acordo com tudo o que penso, dessa forma não haveria nem aso a discussão nem diferenças na maneira de pensar e consequentemente de treinar, eu não digo que na Holanda não se pense ou não se procure retratar o futebol de rua, alias o FCP tem nas suas instalações meios para tentar fazê-lo ( existem muitos artigos sobre os mais variados temas,e teses a defender as mais variadas teorias). Sei e percebo que a maior ou menos habilidade motora permite ter um melhor ou pior gesto técnico, aquilo que eu digo e defendo a que a maneira como o estimulo se lhe é induzido(input) desenvolve as respectivas terminações nervosas (sinapes) para produzira as mais variadas respostas( output), o futebol de rua não é apenas os pisos e bolas variadas ou o numero de jogadores por equipa, ou a ausência de treinador, é muito mais que isso, é também o contexto social. Volto a reiterar que é apenas a minha visão, para uns o copo está meio vazio, para outros meio cheio.
    Obrigado por ler
    Com os melhores Cumprimentos
    André Borges

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